Biomitografia

Para não trair a tradição nem a vida de Kiki, evoco-a. O que me caiu às mãos, de qualquer maneira, não foi suficiente para lançar um olhar amplo e reclamar um conhecimento total da vida e das vivências de Kiki e Irineu Peixoto. Aí está, mais uma vida acrescentada... mas a primeira não pode ser contada, ou evocada, sem se remeter à segunda... portanto, estejamos preparados para muitas outras vidas e mortes, durante o exercício de evocação da vida dessa mulher.....

Esclareço: um dia, ao acaso, passeando pela rua irritei-me com tirinhas de papel, espalhadas pela calçada, diante do prédio onde moro, no Leblon. Bairro de classe alta e média alta, incensado pela mídia, desejado por todos, tolerado por alguns que buscaram naquele pedaço de Rio de Janeiro uma vida sossegada. Mero engano. Interrompo aqui essa digressão e protesto, não é sobre mim que escrevo... mas as tirinhas de papel, espalhas na calçada me irritaram profundamente. Esbravejando, comecei a recolher, uma por uma, e, para minha surpresa, vi que todas tinham algo escrito. Uma caligrafia elegante, em tipos diferentes de papel. Alguns, amarelados. Outros, mais grossos, com marcas d’água. Pareciam as mensagens contidas em biscoitos da sorte de restaurantes chineses. Em vez de lançá-las à lixeira, levei-as comigo para casa.









Biomitografia*


Kiki Peixoto: uma vida que não teve início. Um fim, sem finalidades. Sua biomitografia só faria sentido no sentido dos sentidos. Que é como ela (os) viveu.. De seu nascimento, lembra-se de uma terapia de regressão em que lesmas se arrastam pela grama, os coelhos ficam parados esperando a chuva passar, toda uma fauna em arrepios.A juventude de Kiki tinha sido colocada num envelope e expedida para um endereço na praia de Ipanema. Ela precisava esquecer. Desse tempo, aos poucos a cidade se via coberta de fragmentos desconexos.Rio de Janeiro: Ela sabia, quando se aproximou daquele corpo jovem que era iminente um desastre, tomada de intensa raiva sentia-se próxima de tomar decisões irreversíveis.Então Kiki encontra Irineu, que jogará em suas costas o Peixoto. Mas antes de pesar, flutuavam sobre o Rio, como a dama de Chagal flutuando em torno da Tour Eiffel. Kiki Peixoto, não mais somente: eram os "que dois" do Nelson Rodrigues, um quadro impossível de Miró, estavam destinados a se separarem, a barca da doçura afundava. O cavaleiro fiel deixara sua dama. São Paulo viera a ser completamente o túmulo do samba. Até que ela resolveu:  Odiava pombos. Kiki é só afeto, não tem profissão, não tem colegas de trabalho, nem filhos, nem marido, nem corpo. Irineu, assim como entrou em sua vida, saiu pela porta ao lado, dividido em dois, como vítima de crime hediondo. Kiki prosseguiu vivendo. Roendo as unhas e engasgando-se com palavras. Lambendo o chão e colhendo com a língua ácaros e rimas ricas. A vida, bio, deu voltas e dela é tudo o que se sabe. O mito, Kiki, sem deixar de marcar presença-ausente nas letras (e nos números primos, os solitários exatos, reféns do Um e dependentes de si mesmos para se desdobrarem). Sua grafia é tudo o que resta perdido sendo achado aos poucos, aos porcos e às pérolas inscritas em tiras de papel, ocultas em ostras negras ou biscoitos chineses.





* Biomitografia escrita por Sergio Barcellos a partir de frases de Kiki .
 
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